A dualidade da vida: entre perdas e ganhos
Todos nós temos uma vida dupla. Isso é pacífico, desde sempre. Falo da identidade pública e da privada que utilizamos no decorrer da vida. Entre amigos confessamos (tal qual diante de um sacerdote, que guarda para si e Deus nossos segredos) coisas que jamais diremos em público. Algumas coisas sequer para nós mesmos confessamos, deixando-as guardadas no baú do subconsciente ou no inconsciente. Ledo engano acreditar que tudo que se diz em público é a expressão fiel e completa de nossos pensamentos. O viver em sociedade é algo que requer o uso diplomático das palavras.
O filme O Mentiroso, com Jim Carrey, é uma hilária e pequena amostra disso. Imagine um filho, na véspera de seu aniversário, faz um pedido para que o pai, advogado que sempre falta com a palavra com o menino, de a partir daquele dia o pai não poder mais mentir. Se transpusesse do universo jurídico para o político, o filme teria o mesmo efeito hilário, já que de promessas não cumpridas muitos eleitores estão fartos...
Assim é a vida e a sociedade e sua dualidade e dupla identidade...
Hoje, essa dualidade impõe-se também ao universo paralelo que é o mundo digital. Somos seres de carne e osso, no mundo real, e um ser digital, feito de bits e bytes, quando ingressamos na internet, e ali construímos perfis, seja em comunidades de relacionamento como o orkut e assemelhadas, ou quando usamos uma conta de e-mail (correio eletrônico), em que nem sempre o ID (login) que precede o sinal de @ (arroba) e a conta da agência virtual de "correios" , por nós escolhida, e o mesmo de nosso RG (cédula de identidade). Li, tempos atrás, um texto em que psicólogos analisavam o perfil de cada internauta, a partir desses login's, normalmente crivados de apelidos, em que as pessoas utilizam expressões que determinam essa dupla identidade (indicando uma característica que de fato não possuem). No orkut, msn, chats e outros, dá pra se notar que muitas fotos, nomes e características deixadas públicas não correspondem de fato ao que o ser humano é do outro lado da tela. É curioso... E Freud, Carl Jung, além de Bill Gates e Steve Jobs poderiam ficar debatendo horas a fio (ou sem fio também, atualmente). Claro que os dois primeiros, só se for em uma conexão com o outro mundo, evidentemente. Risos.
Mas o que me fez escrever hoje esse post foram dois fatos acontecidos ontem (sexta-feira, 14/11), que me trouxeram emoções contraditórias e extremadas.
Primeiro, a visita de Canrobert Brasil, talentoso ator e diretor de teatro, coordenador do Grupo Dupla Face, que encenou esse ano, na Semana da Criança, no teatro municipal de Rio Grande - RS - Brasil, a minha segunda peça dirigida ao público infantil, intitulada "As Travessuras da Bruxa Fel", um argumento proposto pelo próprio Can, para tratar da questão ambiental. Can trouxe-me um vídeo da referida peça, produzido por José Rover, também ator e responsável pelo cenário das duas peças que escrevi: "E agora Betinha?" e "As Travessuras da Bruxa Fel" (fotografia da capa do DVD, acima). Foi uma emoção única poder ficar com uma cópia daquele espetáculo, que trouxe a todos os integrantes do projeto uma satisfação de trabalhar com a arte, a cultura e a sociedade. Na peça, usei muito do que aprendi com a literatura e o cinema, mesclando humor, poesia e reflexão... Há momentos que é uma satisfação ouvir a risada do público, tanto infanto-juvenil como adulto, noutras há um silêncio e a percepção de que a mensagem ambiental é compreendida por ambos os públicos, cada qual com sua visão de mundo, logicamente... A vida é assim, ora cômica, ora trágica, muitas vezes a junção de ambas: tragicômica, como a política e a televisão nos brindam diariamente, numa sucessão de fatos que seriam cômicos não fossem trágicos, e vice-versa. Agradeço ao Can e ao Grupo Dupla Face por ter realizado pela segunda vez esse sonho de ver personagens de papel criarem vida, graças ao talento de toda a equipe envolvida em ambos os projetos. Rever a história de Fel, a bruxa má que possui duas aprendizes de feiticeira, Mel e Lua, que têm medo de bruxa e não sabe fazer o mal, respectivamente, além do Mágico Sol, que vem trazer magia e luz àquele reino desencantado, foi algo que não tem preço... Guardar comigo esse vídeo, melhor ainda.
O segundo fato, comovente, inesperado e profundamente lamentável, foi saber pelo colega Sérgio Puccinelli, presidente da Academia Rio-Grandina de Letras, a qual pertenço, do falecimento do também colega (ou confrade da entidade artístico-cultural) e meu ex-professor Gil Barlém Martins, por motivo de enfarte.
Gil era advogado, professor universitário, jornalista, ativista cultural, entre outras atividades. Nascido em Rio Grande, tinha 67 anos, e mantinha espaço no Jornal Agora da cidade há 30 anos, onde, com o seu estilo peculiar, propunha reflexões para o cotidiano do município e da região.
Gil foi meu professor de Direito Administrativo no Curso de Direito da FURG. Quando, anos depois, fui assessro jurídico na educação, suas aulas me serviram muito para o desafio qyue abracei, até trocá-lo pela tecnologia educaiconal.
Guardarei com carinho de Gil dois significativos momentos para mim: um, quando ele comentou comigo que tinha lido nas entrelinhas de um artigo de opinião (A desumanização da sociedade), que eu havia publicado no jornal, destacando o filme Diários de Motocicleta e exaltando ao homem Ernesto, antes do mito Che Guevara, em que Gil me dissera ter percebido o trabalho "hérculeo" que tive para que o texto apesar de engajado politicamente não parecesse, em período eleitoral, um libelo a favor ou contra alguém específico, mas um texto universal. Realmente, a perspicácia de Gil percebera as entrelinhas que todo escritor deixa pelo caminho discursivo/narrativo. Toda a escritura possui camadas e mais camadas de texturas e tecituras que somente um bom leitor percebe. Como diz minha professora tutora do curso de Letras (Unopar), Lisandra Gomes: "Pode-se descobrir a autoria ou a motivação de um texto a partir da análise do discurso de seu autor". Todo escritor deixa pegadas identificáveis; e, no interior de cada frase, parágrafo, texto, há uma intenção nem sempre explicitada. O bom escritor é aquele que deixa para o texto implícitio e para o próprio leitor a interpretação. Pelo traço de um pintor, a grafia de uma pessoa, pode-se identificar a autoria. Quando aluno do ensino fundamental, uma de minhas primeiras incentivadoras, a profª. de educação artística Maria Lúcia Pinheiro (que me sugeriu não copiar desnehos mas exercitar o traçoá mão livre e a originalidade), descobriu certa feita que eu tinha desenhado para colegas de classe a tarefa que eles pediram para mim. No ensino médio, outra incentivadora, a profª. de português, Marilúcia Rezende, percebeu que eu tinha "ajudado" alguns colegas com a redação, que eles pediram para ajudar... Não tem como, deixamos pegadas e traços por onde passamos... Ainda que não tenhamos um estilo próprio, pode-se através da cópia estalecer relações com o original e perceber nitidamente qual é o primeiro e qual a sua sombra.
No segundo momento, foi uma grata surpresa saber pelo próprio Gil que ele utilizara um outro artigo de opinião (Dignidade Já!), de minha autoria, com seus alunos da graduação em Direito. Texto em que divago sobre a dupla opinião que podemos ter sobre um mesmo tema, com base numa promoção do CDL do município de sortear empregos no final de um ano, a justiça se manifestara contrária a isso, impedindo sua continuidade. Na oportunidade, como "advogado do diabo", vendo os dois lados da questão, estabeleci pontos pró e contra as duas ações do CDL e da justiça, declarando que dependendo do ponto de vista poderiam estar certos ou errados. Saber que esse texto serviu para que os acadêmicos do Direito analisassem o poder de argumentação que as palavras têm, foi muito motivador para mim.
Quando soube de seu falecimento, como ex-aluno, colega de ARL, como leitor, etc. lamentei profundamente sua perda.
Através desses dois fatos acontecidos em um mesmo dia, lembrei-me de um trecho de uma canção indígena (lida muito tempo atrás, quando não tinha cuidado com as refrências) que dizia que "há tempo para dançar e tempo para chorar". A vida é assim mesmo, uma sucessão de emoções, de perdas e ganhos. Precisamos saber conviver com essa dualidade, pois como seres humanos também somos duplos, convivendo com o lado público e o privado. Trabalhando com tecnologia e educação vejo como a geração atual não sabe conviver com perdas, apenas com ganhos. Parte dos jovens busca apenas o prazer e o sucesso, das mais variadas formas, e não consegue conviver com o insucesso, com a pressão, com as regras de convívio social, entrando em crise existencial, emocional, depressão, etc. A geração X, como chamo, é fruto da geração 64, que perdeu muita coisa e tenta compensar com os filhos e netos, toda a opressão que teve nos anos de ditadura militar e familiar. Mas, como diz a sabedoria popular, depois da tempestade vem a bonança... Agora, pais tentam compensar a ausência diante dos filhos, com tudo que é tipo de parafernália tecnológica que lhes exigem. Entre perdas e ganhos, perdeu-se o convívio familiar, e em alguns casos o referencial de vida, o exemplo que vem de casa. Muitos conflitos que têm ocorrido nas escolas, pelo país e mundo afora é fruto de um modelo civilizatório que valoriza e premia o ter e não o ser... O que vale hoje é TER bens e não SER humano... De vez em quando, alguns ganhos e perdas humanas nos fazem refletir para o que de fato vale a pena na vida... Bom para ver como tudo é extremamente transitório para que nos apeguemos demais às coisas que não levaremos pra outro mundo paralelo, seja numa 5ª dimensão ou não...
Trabalhando com tecnologia educacional, cada vez mais tenho aprendido a valorizar o fator humano, que é o que faz uma caixa cheia de fios (e outras sem estes) tornar-se objeto que dá vida a sonhos de seres humanos que valorizam seu semelhante, acima do bem e do mal... Entre perdas e ganhos, a vida segue seu caminho, sempre nos dando grandes lições... Um bom fim de semana a todos, plugados com o seu cotidiano e nem tanto conectados apenas às máquinas...
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