sábado, dezembro 13, 2008

O dito pelo não dito...


Reproduzo, abaixo, dois artigos de opinião, sobre as repercussões do "Sífu" do Presidente; ou melhor, do dito pelo não dito, afinal a expressão não é um palavrão e sim uma alusão a um. No Brasil, certas coisas repercutem mais do que outras.
Recentemente, por causa de um lance controvertido no clássico Flamengo x Cruzeiro, o time da Gávea fez o maior escarcéu contra o árbitro Carlos Simon, inclusive o denunciando à FIFA, numa aparente tentativa de um "sífu" nele. Logo, a comissão de arbitragem voltou atrás na punição de fazer o juiz de futebol apitar apenas jogos da 2ª divisão, e não creio ter lido, ouvido ou visto retratação da referida agremiação.
Domingo passado, num lance mais controverso, que acabou dando o título ao São Paulo, foi validado um gol "legitimamente" impedido, e ninguém fez nenhum escarcéu. A mesma grande mídia que lançou suspeitas à conduta do árbitro gaúcho, indicado para apitar próxima Copa do Mundo, silenciou, ficando no ar o famoso "dito pelo não dito". Em 2005, lance semelhante e controverso, deu o título ao Corinthians, contra o Internacional, que a exemplo do Grêmio, em 2008, lutava palmo a palmo, e igualmente com denúncias contra a arbitragem. Dois pesos e duas medidas? INMETRO neles!
Por ser gaúcho, vivendo na periferia do poder central do Brasil, às vezes tenho certa paranóia político-futebolítica. Por sinal, já escrevi e publiquei uma série de 4 artigos de opinião, com o tema "Futebol: a metáfora da vida", em meu outro blog, chamado Controlverso. Breve sairá o 5º artigo, com o mesmo tema, envolvendo polítia, justiça e futebol, a partir dos entrecruzamentos do noticiário.
Mais o que me leva, como estudioso das letras, a publicar abaixo os 2 artigos, de Sírio Possenti e de Pasquale Neto, são suas abordagens, relativas ao uso da palavra e da expressão, que gerou tamanha controvérsia, o tal "sífu" do presidente Lula.
Leiam e tirem suas próprias conclusões.

Diarréia, Sífu.

(Sírio Possenti)


Nesta semana, os temas abundaram. Há ocasiões angustiantes, fica-se procurando um pretexto para a coluna, e nada. Nenhum cidadão diz alguma coisa peculiar (ou a
mídia não põe a peculiaridade em circulação) e nenhum colunista diz nada de muito estrambótico sobre sintaxe ou ortografia.
Mas, neste começo de dezembro, os deuses foram generosos: Cony reclamou da linguagem acadêmica, porque não entendeu passagens de um texto, Lúcia Guimarães escreveu
sonoras bobagens sobre gerundismo em sua coluna no Estadão, Lula teve um comportamento no mínimo informal, em pronunciamento no Rio de Janeiro (falou "diarréia"
e "sífu", abalando os sólidos alicerces morais e etiquetais da sociedade brasileira), um jornalista de Brasília analisou pérolas do ENEM, artigo meio bobo que mereceu
análise muito competente de Marina Silva etc.
Vou ficar com o caso Lula. William Bonner anunciou o pronunciamento no Jornal Nacional, prevenindo a Nação de que o presidente tinha usado linguagem (cenho franzido,
olhar de lástima dirigido ao Hommer Simpson que ele imagina do outro lado da tela)... "extravagante".
Lula, à vontade, desancou os que têm uma "diarréia" de mercado e depois pedem socorro ao Estado. Em seguida, defendeu sua posição de animador da economia; alegou
que não pode ficar dizendo que há crise, que ele tem que incentivar o povo. E fez uma comparação (não venham dizer que foi uma metáfora, por favor...): se um médico
vai falar com um doente, o que deve dizer? Que vai melhorar, que vai sair dessa, ou deve dizer que o cara "sífu"? Pois foi o "sífu" que colocou o país em polvorosa.
Uma cidadã que viu o telejornal escreveu à Folha de S. Paulo dizendo que achava a linguagem de Lula indecente, e não extravagante (disse mais: que está entre os
30% que desaprovam lambanças e não apóiam o presidente). Um leitor foi ainda mais radical: achou a coisa tão ruim que está pensando em renunciar à cidadania brasileira.
Contam os jornais que o discurso do presidente foi transcrito sem o "sífu" em algum site oficial, mas que a "palavra" voltou mais tarde ao documento. A Folha menciona
o episódio em seu editorial, e lhe dedicou um sermãozinho. Seu ombudsman, no domingo, disse que tanto destaque cheirava a preconceito. Um articulista comentou o
caso na ISTOÉ. Cony voltou ao assunto no dia 9/12, terça-feira, para dizer que se espantou mesmo foi com a palavra "chula", encarregada de qualificar a fala presidencial,
e contou que, na infância, achava que esse era um dos muitos nomes da genitália feminina...
Juro que eu não sabia que o país era tão sério! Todo mundo anda pelado a qualquer pretexto, todos/as mostram a intimidade e as partes, os domingos à tarde da TV
são quase aulas de anatomia, e o homem não pode falar "sífu". Francamente!
Sim, sei, ele é o presidente, e existe a tal liturgia do cargo. O que suportamos e achamos normal na boca de uma personagem de Rubem Fonseca ou de Bocage desaprovamos
no discurso presidencial. O que achamos normalíssimo nas declarações pedagógicas vespertinas do Faustão fica abominável na boca do presidente. Tudo bem. É claro
que há uma distribuição social do palavrão, seja por falantes (homens podem mais que mulheres - ou podiam), seja por contextos (o que se pode dizer em arquibancada
não pode em palanque).
Mas vejamos o episódio um pouco mais de perto. Merece uma pequena avaliação técnica, digamos assim. O curioso é que tenham acusado Lula de empregar um palavrão quando
usou uma forma que se destina exatamente a evitar o palavrão. Sim, pois "sífu" não é um palavrão. Estudiosos dos tabus informariam sobre formas como essa exatamente
o contrário: que, para não dizer palavras tabu, no caso, um palavrão, as sociedades inventam "derivativos": alteram a forma ofensiva ou perigosa (abreviam, trocam
um dos sons etc.).
Por exemplo, dizemos "diacho" para não dizer "diabo" (sem falar que dizemos "o cujo", "o coisa ruim" etc.), dizemos "orra, meu!" para não dizer "p..., meu!" assim
como dizemos "sífu" para não dizer todos sabemos o quê. Tanto sabemos, que a mídia achou que Lula disse o que todos achamos que ele disse, embora não o tenha dito.
Escrevi alhures que acho essa coisa de cerimonial uma quase bobagem. Para exemplificar, dava meu testemunho de que as únicas coisas que aprovei no presidente Figueiredo
foi sua grossura no campo da etiqueta: achei ótimo ele dizer que preferia cheiro de cavalo ao de povo, que achava o leite de soja uma droga, que, se ganhasse salário
mínimo, dava um tiro no coco. Grossura? Claro!! Mas você preferiria que ele mentisse?
Fico deveras impressionado com a pudicícia da sociedade brasileira, especialmente da TV Globo!! Mas não é lá que passa, só para dar um exemplo, o BBB? Ou será que
Bonner estava se referindo à palavra "diarréia"?


Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os
limites do discurso.

Fonte: Terra Magazine, 11 dez. 2008.
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Flor do Lácio

O "sífu" e os futuros "médicos" de Londrina

(Pasquale Cipro Neto)


O PAÍS INTEIRO VIU e ouviu o presidente Lula disparar o "sífu" (com acento agudo no "i", sim, já que se trata de paroxítona terminada em "u"). Estabelecendo
um paralelo entre o seu papel (de chefe de governo e, portanto, do Executivo) e o de um médico, o presidente imaginou uma situação em que um discípulo de Hipócrates
atendesse um "paciente doente".
Disse Lula: "O que você falaria para ele? "Você tem um problema, mas a medicina já avançou demais. Vamos dar tal remédio e você vai se recuperar". Ou você diria:
'Meu, sífu'?".
Como bem disse o grande Clóvis Rossi, "discutir se "sífu" é expressão adequada ou não à "majestade do cargo" é irrelevante". O fato é que o termo existe e tem
largo emprego (tabuístico) na oralidade brasileira.
A esta altura, cabe-me explicar o que é "tabuístico", adjetivo relativo a "tabuísmo" (só o "Houaiss" registra os termos). Eis a definição que o dicionário dá
de "tabuísmo": "Palavra, locução ou acepção tabus, consideradas chulas, grosseiras ou ofensivas demais na maioria dos contextos".
Em sua (às vezes aparente) simplicidade (e/ou grosseria, para alguns), Lula consegue, com suas metáforas, ser mais do que explícito e "didático". Só quem não
quer não entende o que presidente quer dizer.
Para muitos, essa metáfora de Lula se apoiou numa hipérbole (exagero) por demasiado inverossímil.
"Qual o médico que diria "sífu" a um paciente?", disseram algumas pessoas que comentaram o episódio.
Pois não há nada melhor do que um dia após o outro. Não foi preciso esperar mais do que uma semana para que a ultratosca realidade brasuca se encarregasse de
mostrar que a parábola do presidente nada tem de irreal ou surreal. Refiro-me ao triste episódio de Londrina, em que futuros "médicos" invadiram o hospital universitário,
em prosseguimento à "comemoração" iniciada num boteco da redondeza. De lata cheia, os nobres rapazes fizeram o diabo. Até rojão soltaram nos corredores do hospital
da universidade.
Não me admiraria que um desses futuros "médicos" dissesse "sífu" a um de seus pobres pacientes. Se é verdade que a linguagem é a expressão do alcance da percepção
do mundo, a (percepção) desses boçais não deve permitir-lhes nada mais do que o "sífu" na situação idealizada por Lula. Como bem disse o médico Bráulio Lima (coordenador
do exame do Cremesp e professor da Unifesp) a respeito do episódio, "a profissão médica é uma profissão cuja essência é humanista". E, digo eu, há muito tempo nossa
sociedade e, sobretudo, nossa escola trocaram o modelo humanista pelo tecnicista.
Que tal exigir nos exames a compreensão de textos filosófico-literários, muitos dos quais, por sinal, foram escritos por brilhantes médicos-escritores (ou escritores-médicos),
como Pedro Nava (autor do monumental "Baú de Ossos"), Guimarães Rosa e Jorge de Lima?
E que tal exigir a leitura de letras da nossa música popular, como a da magistral "Resposta ao Tempo", do psiquiatra-poeta (ou poeta-psiquiatra) Aldir Blanc?
A belíssima canção (cuja melodia é de Cristóvão Bastos) foi imortalizada por Nana Caymmi.
Em tempo: faço questão de cumprimentar o reitor da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Wilmar Marçal, pelas corajosas e maduras declarações e atitudes.
É isso.


Observação 1: Os artigos constavam de mensagem eletrônica, recebida do prof. Eduardo Paes (Porto Alegre-RS), editor do portal NOSSA LÍNGUA_NOSSA PÁTRIA - Um sítio a serviço da Língua Portuguesa, da Educação e da Literatura Brasileira (www.nlnp.net).
Observação 2: Entre os escritores-médicos ou médicos escritores, incluiria também um de meus autores preferidos, Moacyr Scliar.
Observação 3: Imagem acima, quadro de René Magritté, extraída dainternet, do endereço abaixo:
http://www.princeton.edu/~rmeeks/magritte.jpg