segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Trem da Vida

O filme Trem da Vida, de Radu Mihaileanu, é daqueles momentos mágicos do cinema: vencedor de vários prêmios, mescla a fantasia com a dura realidade, trazendo nas entrelinhas mensagem transcendental.
Tudo começa quando Schlomo, o bobo da pequena aldeia judia no Leste Europeu, traz a terrível notícia de que os nazistas estão chegando para deportarem todos os judeus pr’algum famigerado campo de concentração. Todos suspeitam qual é o destino reservado, caso sejam capturados e enviados a um daqueles matadouros. Entre atônitos e amedrontados, muitos passam a sugerir planos mirabolantes de fuga. A mais lúcida e ao mesmo tempo mais estapafúrdia alternativa é justo a do que é considerado louco por seu povo: comprar um trem e alguns deles vestirem uniformes nazistas, para que disfarçados passem pela fronteira, rumo a Rússia, alcançando a sonhada liberdade.
A partir daí, o Conselho da comunidade passa a recolher doações para a aquisição de locomotiva e vagões, todos adquiridos em péssimo estado de conservação, que são reformados antes da partida. Tudo feito às escondidas, para que a população da cidade vizinha não os delate. O maquinista encarregado da viagem é burocrata na estação ferroviária, que sempre sonhou em conduzir um trem, trazendo consigo velho manual. Há cisões entre os fugitivos: de comunistas a religiosos. O que é escolhido a se passar por major nazista, por dominar o idioma germânico, é pacífico judeu, de nome Mordechai, que com o passar do tempo, veste a personagem e trata a todos com se de fato fosse nazista, para que convença a si mesmo, e seja convincente, caso encontrem alguma patrulha alemã pelo caminho.
Fantasia que lembra caso verídico: experiência feita em faculdade americana, reunindo alunos, divididos em 2 grupos (apenados e carcereiros), teve que ser interrompida, pois os que se passavam por algozes começaram a ser truculentos com os falsos prisioneiros. O que corrobora com a assertiva de Napoleão: “Todo aquele que não deseja ser oprimido, quer ser opressor”. O caso do perseguido povo de Israel, que sempre disperso, até o final da 2ª Guerra, e que durante esta sofreu o maior genocídio da História (em prisões e fornos crematórios), e, anos depois, seu exército agindo de forma autoritária contra assentamentos palestinos, levantando muros, é paradoxo dramático.
Trem da Vida não é drama, apesar de mesclar comédia e tragédia, fazendo rir e chorar na dose certa, e a cada cena. Numa delas, talvez a que sintetize todo o filme, Schlomo, o bobo, reflete sobre a existência humana, numa das passagens mais memoráveis: “Deus criou o homem à sua imagem./Isso é lindo! Schlomo à imagem de Deus./Mas quem escreveu isso no Torah?/Foi o homem, não Deus./O homem escreveu sem modéstia, comparando-se a Deus./Talvez Deus tenha criado o homem.O homem./O homem, filho de Deus, criou Deus, só para poder se inventar.../O homem escreveu a Bíblia... para não ser esquecido sem se importar com Deus./Não amamos e não oramos a Deus./Ou melhor, imploramos para que nos ajude aqui na Terra.../Mas não nos importamos com Ele./Só pensamos em nós mesmos./A questão não é saber se Deus existe ou não.../Mas sim se nós existimos”.
Ao olharmos em volta, e vermos o mundo e as pessoas que nos rodeiam, suas idiossincrasias, conceitos e preconceitos, pecados e virtudes, glórias e sinas, grandezas e misérias humanas, a questão é saber - não se Deus existe, mas - se nós existimos da forma que vemos o outro ou que o outro nos vê. Quem ou o que é real? Como disse Paulo Autran: “Acho que o homem fez Deus a sua imagem e semelhança.”
Nesse Trem da Vida, nem sempre somos a locomotiva da própria existência passageira, e, quando muito, apenas um dos inúmeros vagões, atrelados aos interesses de “maquinistas” que decidem por nós: vida, caminho, destino e futuro. Descarrilados sonhos são deixados pra trás, quando descemos na estação deserta ou seguimos adiante sem fazer concessões ao justo, líquido e certo. Se a vida é como o trem que passa, talvez cada vagão seja parte de nós, lotado de esperanças e desilusões. Padre Vieira disse: “Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz”.
Observação 1: Artigo acima, de minha autoria, publicado originalmente no Jornal Letra Viva, nº 17, outubro/2005.
Observação 2: Imagem acima, capa do referido filme, extraída da internet, do endereço http://www.dvdversatil.com.br/images/dvd_87g.jpg
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