terça-feira, janeiro 29, 2008

A ilusão do real


Enquanto pesquisador, o historiador deve ser o mais fiel às fontes e à metodologia de pesquisa. Mas, o documento não é a única fonte segura de informação, devendo a ele se agregar relatos orais e tudo o que sirva, se não como prova cabal, como indício de situações de fato ocorridas. Assim, a utilização adequada da palavra no discurso historiográfico, evita o que o Prof. Carlos Alexandre Baumgarten (2005) denomina de “a ilusão do real, quando marcado ideologicamente pela seleção que tanto o historiador quanto o romancista realizam no que se refere aos fatos presentes na realidade.” Afinal, todo documento, por mais fidedigno e autêntico, carrega nas entrelinhas a carga ideológica e discursiva de sua época, que a lingüística e, mais precisamente, a terminologia podem explicitar, pelo uso de chavões, expressões recorrentes ou o próprio desencadear da construção narrativa.
S.H. Butcher (1951) disse: “Não é função do poeta relatar o que aconteceu, mas o que pode acontecer – o que é possível de acordo com a lei da probabilidade ou necessidade. O poeta e o historiador diferem não por escrever em verso ou em prosa. (...) A verdadeira diferença é que um relata o que aconteceu, o outro o que pode acontecer. A poesia é, portanto, algo mais filosófico e mais elevado que a história, pois a poesia tende a expressar o universal, a história o particular”.
A invenção do real, pelo jornalismo literário engajado, através das páginas dos jornais, hoje é exercida pela grande mídia, como evidenciado nas últimas eleições, quando notícias veiculadas, sem a devida checagem de fontes anônimas, lembraram os tempos de exceção. Alguns criticam os sindicatos de trabalhadores de suposta partidarização, como se os sindicatos patronais, os grandes conglomerados e a própria mídia – uma concessão pública – não fizessem concessões à própria realidade, na divulgação de pesquisas eleitorais a previsões meteorológicas imprecisas, diante do poder econômico cada vez mais concreto e manipulador do real.
Rosa Maria Bueno Fischer, jornalista, professora (UFRGS) e Dra. em educação, fez a leitura dos tempos modernos em “Educação, subjetividade e cultura nos espaços midiáticos”. Alguns trechos merecem reflexão: “(...) a mídia é constituída como lugar de verdade e de como, nela, há uma relevância dos temas do corpo, da sexualidade, da infância e da juventude, o elogio ao efêmero e do presente sem história, o excesso de informação multiplicada ao infinito e sem hierarquização, a publicização da vida privada”. Nada mais efêmero do que a tediosa publicização da vida dos queridinhos da mídia, que vendem a exclusividade de fotos e imagens de casamentos fugazes. Fischer continua: “E a TV? Ela narra, ela tece essas histórias, seleciona estratégias de linguagem pelas quais edita vidas, aponta caminhos, ensina modos de ser, espetaculariza o humano, a qualquer preço”. Essa espetacularização é mais do que a definição de programas, como Big Brother Brasil, que lucram milhões com ligações telefônicas pagas, em que pessoas são confinadas, editadas, programadas a ser uma personagem, tudo pela audiência. Fischer diz ainda: “(...) há na cultura uma tendência a nos perdermos no indiferenciado, de vivermos (...) confundidos num coletivo sem nome e sem força social”; “(...) Enquanto a escola ficar no papel tímido de espectadora ressentida de uma sociedade que se pauta pelo mercado e pelas imagens de sucesso individual, de culto narcísico do corpo, de ilusão de felicidade dada pelo consumo real ou imaginário, estará apenas marcando seu lugar como ausente do seu tempo”. A permanência ilusória do saber? Fischer mostra que: “(...) o lugar da liberdade confunde-se com uma marca de cigarro, de carro ou de tênis”; e que “(...) estamos imersos em fábulas perversas criadas pela democracia do mercado e da publicidade (...)”. Por fim, conclui: “(...) presos que ainda somos aos modos cristalizados de perceber e conceber o mundo, os grupos sociais e a nós mesmos, e que a mídia nos devolve, cotidianamente, com todo o sedutor aparato tecnológico de que dispõe, mas que replica uma mesmice tão difícil, para nós, de abandonar”. Então, liguem a consciência, desliguem a TV.
Observação 1: Artigo de opinião, de minha autoria, publicado originalmente no Jornal Agora, de Rio Grande - RS - Brasil, em 24/11/2006.
Observação 2: Imagem acima, intitulada "Chain of Desire", de Mark Kostabi, extraída da internet, do endereço
http://www.adambaumgoldgallery.com
Observação 3: Em tempo de férias e de Reality Show na TV, nada melhor que uma retrospectiva de alguns textos (inéditos neste blog) para uma reflexão sobre as estratégias do cotidiano na mídia brasileira.