quarta-feira, janeiro 09, 2008

A Ética e a Poética


Anos atrás, achei fragmento incompleto de um belo texto do Padre Antonio Vieira, célebre por suas posições em defesa dos indígenas, onde comparava a vida dos escravos negros num engenho de cana-de-açúcar ao martírio de Cristo. Após longa e infrutífera pesquisa pelo texto original, somente no corrente mês *, ao iniciar a leitura de “História Concisa da Literatura Brasileira”, de Alfredo Bosi (p.51), me deparei ao acaso com o fragmento original, tão procurado, que segue logo abaixo:
“Em um engenho sois imitadores de Cristo Crucificado: porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. (...) Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo”. “Eles mandam, e vós servis; eles dormem e vos velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: “Sic vos non vobis mellificatis apes”. Verso latino atribuído a Virgílio: “Assim vós, mas não para vós, fabricais o mel, abelhas”.
O belo fragmento faz parte do Sermão XIV do Rosário, pregado pelo Padre Vieira em 1633 à Irmandade dos Pretos de um engenho baiano, quando o sacerdote comparou os sofrimentos de Cristo aos dos escravos, justamente a uma platéia de escravos negros, que sonhavam com a liberdade que precisaria de mais de dois séculos para se concretizar.
Em quatro séculos nem sempre a ética e a poética andaram de mãos dadas. A massa trabalhadora desse país-continente, independente da cor da pele, como vivendo numa Divina Colméia Humana (Divina Comédia de Dante?), continua a produzir o mel dia-a-dia, no aguardo da melhor distribuição de renda para a maioria da população. Um projeto que deve ser de Nação e não apenas de governo.
* Observação 1: O texto acima, de minha autoria, foi publicado originalmente no jornal Letra Viva, do qual também sou editor, na edição de outubro/2006, nº 29.
Observação 2: A imagem acima, cópia escaneada no quadro do pintor Aldo Locatelli.
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