A Máquina do Tempo
Clarice Lispector escreveu: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento”. O tempo é mágico. Alguns conhecidos vivem no passado (de recordações, boas ou más) ou no futuro (esperando por dias melhores, que nem sempre virão!). Viver no presente, como passageiros da mágica máquina do tempo em movimento, presenciando in loco fatos que as gerações futuras recordarão, eis o desafio.
Os de minha geração, nascidos nos anos 60, puderam viver um tempo de rpm’s - revoluções por minuto (futebol, sexo, rock’n’roll...). Falcão, e sua elegância dentro e fora dos gramados; Sócrates, o jogador com nome de filósofo grego, que dava passes de calcanhar, e Zico, o galinho de Quintino, ídolo do Flamengo, foram jogadores diferenciados, símbolos de uma época em que o futebol-arte superava o futebol-força. As pessoas mudaram e o mundo não...
Nos anos 70 existiam poetas/cantores e vice-versa que nos presentearam com clássicos do cancioneiro popular - eternos enquanto dure? Atualmente a “descartabilidade” de letras e músicas é brutal. E a “lógica” atual do rádio e da TV é a de bater na mesma tecla, até esgotar ou emperrar (seja música, fofoca ou notícia), para depois nunca mais tocar no assunto...
Tim Maia cantava poesias musicadas, como essas: “Ah, se o mundo inteiro me pudesse ouvir/ Tenho muito pra contar/ Dizer que aprendi/ Que na vida a gente tem que entender/ Que um nasce pra sofrer, enquanto um outro ri/ Mas quem sofre sempre tem que procurar/ Pelo menos viajar/ Razão pra viver/ Ter um sonho pra sonhar/ Um sonho azul/ Azul da cor do mar”. Bela, comovedora, atual. Raul Seixas dizia ter nascido a 10 mil anos atrás; Belchior decretava numa canção ter medo de avião; Elis Regina dava vida ao amor do bêbado pela equilibrista, enquanto a liberdade presa, torturada e moribunda, se equilibrava sob o pau-de-arara, muito usado pelos meios de repressão. Havia um lema juvenil que dizia ser a “liberdade, uma velha calça jeans, azul e desbotada”. Naquela época não havia o videogame, o celular, o microcomputador e a internet. As crianças brincavam de pipa, de pular corda, fazer carrinhos com latas de leite em pó, do futebol com bola de meia, jogar bola de gude, e as meninas brincando de “cinco marias”, com saquinhos em formato de quadrado, costurados com areia ou arroz dentro, que a juventude atual, com certeza, com raríssimas exceções, não deve saber, ou achar tudo isso brinquedos da idade da pedra. Coisas sem graça e sem razão.
Aprendi muito com as informações contidas em prosaicos álbuns de figurinhas colecionáveis; histórias em quadrinhos e desenhos animados, apesar de ter me tornado gente em plenos anos de chumbo e de censura. Cálice, de Chico Buarque, um hino de minha geração. E a leitura, uma forma de viajar no tempo e no espaço, dando asas à imaginação. Hoje, excêntricos desenhos japoneses são mania entre as crianças, vendendo desde salgadinhos a material escolar, além de vestuário em geral. Há personagens evoluídos e não-evoluídos numa constelação de mais de 150, colecionados em figurinhas por toda uma geração, que evoluiu tecnologicamente, mas vive num mundo virtual, que é bem diverso do mundo real, lá fora, em estágio avançado de degradação, quando se desconectam da infovia da comunicação à distância – roda mágica em espiral -, uma tal de internet.
A máquina do tempo pode nunca passar de ficção científica. No entanto, somos todos passageiros do tempo que passa por nós feito trem-bala, sem esperar que façamos sinal e entremos quando este chegar à última parada. Muitos perderam o bonde da História por serem temerosos do que os aguardava na estação futura. O futuro é um caminho sem volta, viagem ao desconhecido. Uma bala perdida no tiroteio da imagem e da informação.
Com o tempo, outros se tornaram conservadores nas idéias, apesar de discurso libertário. De Volta Para o Futuro – como num filme -, muitos pregam contra os veículos automotores e tudo mais, como se voltando ao passado do cavalo e da carroça tivéssemos solução para a crescente poluição das grandes cidades – um retrocesso, e uma idéia simplória, pois o rochedo não pode deter a evolução natural do mar, mas sim lutar para que dentro do movimento retilíneo e uniforme do progresso, estabeleçam-se normas de controle de efluentes, de defesa do meio ambiente e da qualidade de vida.
“Navegar é preciso. Viver não é preciso”, disse Fernando Pessoa, sem se dar conta de que muitos discípulos seus, poetas ou não, confundiriam seus belos versos como se fossem de uma fantástica profecia: viveriam no futuro presos, diante de uma tela tremeluzente, conectada a outras máquinas, pelo mundo afora, navegando em páginas, salas de bate-papo em tempo real; presos a relacionamentos virtuais, substituídos pelo medo de viver. Enquanto há tempo, melhor viver um amor desplugado do microcomputador, com seus altos e baixos relevos, do que “viajar” numa máquina do tempo perdido...
A cada ano o sonho de consumo de muitos jovens e até de adultos é trocar de máquina, seja qual for (pc, celular, TV, carro, moto...), vivendo também como máquinas, confundindo o real com a ficção. Tudo torna-se descartável. O novo pelo novo é a ordem vigente. Como disse George Santayana: “Só o caráter e a tradição moral dão ao viajante um ponto de referência para o que ele está observando”. Já o sábio Protágoras (487-420 a. C.) quase 2500 anos atrás, comentou: “O homem é a medida de todas as coisas. (...) Dos deuses nada posso dizer de concreto (...) pois nesse particular são muitas as coisas que ocultam o saber: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana”. De lá pra cá, o que mudou?
Nosso corpo e mente são a verdadeira máquina do tempo, conectados ao tempo-espaço das coisas que consideramos dignas de serem preservadas, independentemente de quando e por quem foram “inventadas”...
Observação 1: Texto de minha autoria, publicado no Jornal Letra Viva, nº 21, fevereiro/2006.
Observação 2: Imagem acima, intitulada Traffic, de Bitter Grapes, extraída da internet do portal www.deviantART.com.
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