terça-feira, abril 21, 2009

A morte da literatura através da morte do leitor?


Tomei a liberdade de reproduzir na íntegra o artigo enviado-me pelo prof. Eduardo Paes, de Porto Alegre - RS - Brasil, editor do portal Nossa Língua_Nossa Pátria (www.nlnp.net). Trata-se de texto de autoria de Raimundo Carrero, publicado em 04/04/2009, no Jornal do Brasil. Veja abaixo a íntegra do mesmo.
Um texto provocador, inspirado em A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov, autor búlgaro que cheguei a ler alguns de seus trabalhos durante os créditos do mestrado em letras.
Um texto que merece ser lido por professores e alunos de letras, que são e serão os motivadores dos novos leitores e da perpetuação da literatura entre nós, seja na reprodução do que existe, seja no estímulo a produção de textos, livros etc.
Noutra oportunidade voltarei ao tema, que me é muito tentador, pois sou fruto dos livros e dos autores que li...

ESCRITOR PREVÊ A MORTE DA LITERATURA.
(Por Raimundo Carrero)

RIO - A literatura corre risco de morte e o assassino não é o cinema. Nem a televisão. O criminoso está entre nós. Próximo, dorme na mesma cama, respira o mesmo ar. Ele não é outro senão o leitor. Mas o leitor, é uma pena, também está jurado de morte. Um tipo de leitor especial, justamente aquele em que se confiou toda a vida da literatura: o estudante dos cursos de letras, instigado pelo excesso de teoria, de didatismo, de fórmulas e de esquemas. E não só ele. Também o escritor, o crítico, o resenhista, o professor. De forma que não há um único criminoso: estamos diante de uma quadrilha.
Quem faz o alerta é Tzvetan Todorov em A literatura em perigo, cuja leitura espanta, inquieta e entristece, embora trilhe um caminho que de certa forma já conhecíamos: currículos escolares tornam a literatura emparedada, enclausurada em esquemas frios, distante do coração selvagem da vida. Os leitores somem - ou porque nunca foram convidados à leitura ou por falta de estímulo. Para o escritor búlgaro, o excesso de didatismo tira a festa e o prazer da leitura e, num grau superior, a ingenuidade.
Na falta desses elementos, a literatura agoniza e morre.
A questão, no entanto, não é apenas apontar culpados. E submetê-los à execração pública. Não se trata de investigação policial nem de dedurismo, tão em voga no nosso tempo, com a glorificação do denuncismo. O homem persegue o homem. Tudo é denúncia, com celulares, gravadores secretos, microfones invisíveis. O livro de Todorov não se reduziria a essa lástima. Ele pretende, na verdade, examinar o doente exposto, estudar os mínimos detalhes e consequências, sem a pretensão de ser o dono da verdade, mas sem recuar um milímetro no combate às pragas literárias. Para isso usa o equilíbrio, a erudição e, é claro, a emoção - sem se contaminar pelos excessos.
Pelo exagero. Pelo fanatismo.
Mesmo assim, ele tem razão. É claro que no Brasil há exceções. Na maioria dos casos, entretanto, as escolas, os vestibulares e as universidades transformam a leitura de um romance, por exemplo, em distantes questionários, quesitos, provas formais. Sem esquecer os escritores cheios de salamaleques. Não basta amar Capitu, na sua ternura e meiguice. É preciso descobrir se ela traiu Bentinho, reduzi-la a esquemas, fórmulas, medidas literárias, sem contato com o mundo. O ciúme de Bentinho analisado, questionado, submetido a laboratório científico. Nenhum suspiro, nenhuma paixão, nenhum amor desmedido. A cena do penteado, na adolescência, desperta na maioria dos leitores o coração disparado, o corpo erótico em agonia. Mas não é isso que a escola quer saber. A teoria pergunta: qual foi a técnica usada por Machado? O leitor comum quer saber: traiu ou não traiu? O êxtase da pergunta ingênua em meio a soluços e lágrimas. A exigência curricular envereda por outro caminho. "Os alunos do ensino médio aprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem relação com o restante do mundo, estudando apenas as relações dos elementos da obra entre si", afirma o autor do livro no capítulo "Além da escola", em que examina as razões do equívoco educacional.
A obra de arte literária - romance, novela, conto, poema - deve considerar, sobretudo, esse leitor ávido de estranhamento, de sensação, de aventura, de prazer. Ainda que o autor conheça todas as técnicas e todas as teorias. A palavra de ordem de um narrador deve ser a sedução, com tudo o que ela tem de conquista e de encantamento.
Precisa escrever com simplicidade ainda que sofisticadamente. Recorrer aos artifícios, sem dúvida, mas de tal forma que o leitor se sinta apaixonado pelo que lê, pelo que observa, pelo que sente. A técnica deve servir à conquista; importa levar o leitor ao amor com o personagem e com o enredo, e ele, com certeza, cairá numa paixão desmedida.
Nas 96 páginas do volume, Todorov escreve uma breve e sedutora autobiografia para demonstrar, sobretudo, seu amor ao livro, revelando a vida de estudante na Bulgária comunista, a estratégia para evitar temas de exaltação ao poder ditatorial, a viagem a Paris para continuar os estudos e, mais tarde, a decepção com a rigidez didática da escola e da universidade. A ele interessava o encanto literário - embora tenha se transformado num dos teóricos mais lúcidos da literatura contemporânea - e não os estudos esquemáticos e, às vezes, esotéricos. Espantado, observou que, na França, a análise teórica e crítica era mais importante do que a leitura, a compreensão do texto, a delícia das cenas e dos diálogos.
Todorov elege o Boletim Oficial (nº 6, de 31 de agosto de 2000), do Ministério da Educação da França, como fonte da reflexão, destacando este parágrafo: "O estudo dos textos contribui para formar a reflexão sobre a história literária e cultural, os gêneros e registros, a elaboração da significação e a singularidade dos textos, a argumentação e os efeitos de cada discurso sobre seus destinatários". Lamenta profundamente, para concluir: "Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos".
Daí concluir, com enorme desencanto, que estava tudo errado no ensino. E mesmo quando procurava ajudar os filhos nas tarefas escolares, com a paixão pela leitura, fazia com que eles tirassem notas medíocres. Desolado, decidiu fazer o alerta.
O livro é uma crítica ácida aos cursos de letras, sobretudo na França, mas também, de certa forma, nos atinge e nos preocupa. E não é um livro simples - trata-se de uma provocação, de um debate, de uma análise rigorosa, dividido em capítulos ao mesmo tempo emocionais e técnicos. Todorov admite, é óbvio, a necessidade de uma crítica, um método de análise, de uma teoria. Neste caso, as escolas e as universidades têm razão. E devem insistir. Mas não podem colocar em perigo a literatura.
O tradutor e prefaciador Caio Meira é enfático: "Não é difícil perceber que a literatura está sob ameaça". Aponta, em seguida, um dado expressivo: "Tomemos como exemplo os alunos dos cursos de letras das universidades brasileiras: boa parte, com idades que variam em torno dos 20 anos, pouco ou quase nada leu de nossos romancistas ou poetas". Que não exista hábito da leitura em parte significativa da população, ainda se compreende. O que não se pode compreender é que o estudante de letras não seja um leitor fanático.
A ausência da leitura no Brasil tem razões muito profundas, não é apenas uma questão de disputa com a televisão e o cinema. José Paulo Paes (A aventura literária, Companhia das Letras, São Paulo, 2000), por exemplo, considera que um dos aspectos do problema é que a indústria editorial chegou muito tarde ao Brasil, em torno da década de 30 do século passado. Mesmo assim, os pais são grandemente responsáveis porque não há bibliotecas nas casas. E agora, quando se vislumbra alguma melhora, conforme as estatísticas recentes, eis que o golpe mortal atinge o coração da literatura, porque somos escritores e doutores, mas os nossos leitores e nossos alunos não sabem amar. Nem choram diante de uma paixão proibida.

Fonte: Jornal do Brasil, 4 abr. 2009.

Observação: Imagem acima, intitulado A morte de Marat, de Jacques Loius David. Jean Paul Marat morreu apunhalado na banheira, durante a Revolução Francesa (1793). Imagem extraída da internet, do endereço abaixo
http://oficinadegerencia.blogspot.com/2008/06/
segunda-guerra-primeira-bomba-v1.html