O mundo enigmático de Clarice Lispector
Felizes daqueles que se dão ao luxo de poder conhecer pessoalmente seus mestres, sejam professores em sentido estrito como educadores em sentido amplo. Minha educação teve como pilares meus professores, profissionais da educação, e muitos educadores, em sua maioria grandes escritores, como Érico Verissimo, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, Roberto Drummond, Mario Quintana, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Julio Verne e Clarice Lispector, entre outros. Muito do que sei devo aos meus educadores (escolares e literários) e aos livros indicados ou escritos, por uns e outros. Nessa antevéspera da abertura da Feira do Livro de São José do Norte - RS - Brasil, que tenho o privilégio de ser o patrono, darei mais enfoque a área literária, e espero que os visitantes deste diário virtual (já próximo dos 4.000 acessos) compreendam e compartilhem suas leituras comigo. Eis abaixo o fragmento citado, de Clarice Lispector, em Perto do Coração Selvagem:
O PAI...
"A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem parar. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-=roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam uma nas outras radiantes.
Escostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.
Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Branco. Mas de repente num estremecimento deram corda no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máquina trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coisas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfeitava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados.
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. "Oi, oi, oi...", gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas com aspirador de pó." Clarice Lispector - Perto do Coração Selvagem.
Um bom início de semana a todos nós, sejamos relógios, máquinas, guarda-roupas, galinhas, minhocas, pais ou Clarices. Carpem diem, aproveitem o dia, a cada dia, não como se fosse o último, mas, parafrasenado o título de um filme, como se fosse "O primeiro ano do resto de nossas vidas".
Observação: Imagem acima extraída da internet, site www.lumiarte.com.
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