A vida intertextual: literatura e sociedade
Quando li recentemente o livro Como Proust pode mudar sua vida (1997), do filósofo e escritor Alain de Botton, pude comprovar através de seus argumentos algumas antigas convicções leigas qu'eu tinha sobre a intertextualidade entre a literatura e a sociedade. Através de alguns fragmentos do livro, esgotado nas livrarias, e que adquiri (pasmem!) num sebo em Porto Alegre-RS-Brasil, pude me deliciar com uma escrita erudita e ao mesmo tempo coloquial de De Botton, que conduz o leitor ao universo mágico e quase real da Literatura de Marcel Proust, autor de Em busca do tempo perdido.
Citando Proust, De Botton escreve: "(...)esteticamente, o número de tipos humanos é tão restrito que com freqüência acontece, onde quer que estejamos, termos o prazer de encontrar pessoas conhecidas". Essa sensação de dejàvú quem não sentiu ao ler um clássico da literatura, como Romeu e Julieta, que acaba tornando-se pela repetição dos autores ou do tema na vida real, da não-aceitação da família ao amor proibido de dois jovens? Quem já não conheceu algum Cirano de Bergerác, que poeta feio se esconde do seu grande amor, por receio de não ser aceito? Ou de algum Robinson Crusoé, que vive isolado em uma ilha imaginária, seja num condomínio ou numa praia deserta? Ou o ícone e clichê de todo sonhador, Dom Quixote, que avança contra moinhos ideológicos, econômicos ou reais? Ou algum Fileas Fogg, de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, de Júlio Verne, querendo bater recordes atrás de recordes para ter seu nome e façanha impressa no Guiness Book? Enfim, existem pessoas de nossas relações familiares, sociais, profissionais que bem poderiam ser personagens heróicos ou caricatos d'alguma ficção. Basta olhar em volta e perceber os tipos humanos e literários que convivem de forma ambígua, dentro e fora dos livros, filmes, histórias em quadrinhos, telenovelas...
Como escreveu De Botton, situações desse mote têm implicações dentro e fora da literatura: "Um prazer assim não apenas visual: o número restrito de tipos humanos também implica que, repetidas vezes, nós leiamos algo sobre pessoas que conhecemos, em lugares onde jamais poderíamos esperar que isso acontecesse".
Segundo De Botton, "Proust nos ajuda muito ao observar: 'Não se pode ler um romance sem atribuir à heroína os traços da mulher amada'". Essa tranferência da ficção para a realidade é mais visível nas crianças e jovens que se identificam com seus super-heróis, dizendo abertamente, ao assistirem os seriados e filmes: Eu sou o Batman, e eu a Mulher Maravilha, etc. Alguns incorporam tão bem certos traços literários na vida real que acabam tornando-se personagens e não personalidades. Mas isso já é um distúrbio que a psicologia e a psiquiatria (áreas que não tenho conhecimento, poderão melhor definir). Refiro-me neste post ao leitor leigo e ao escritor que se inspira (e qual deles não faz isso?) no seu cotidiano para escrever peças de ficção. Pra mim, essa relação entre literatura e sociedade se pudesse ser expressa em imagem, lembraria muito a representação gráfica do yin e yang - dentro do lado preto há um ponto branco, dentro do lado branco uma pinta preta, ambos como reflexos um do outro. Acredito que a literatura carrega um si uma pitada de realidade, e a vida em sociedade contém também traços diretos e/ou indiretos de literariedade (qualidade daquilo que é literal, que remete à literatura).
Afinal, como escreveu Proust: "Na verdade, todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo. O trabalho do escritor é meramente uma espécie de instrumento óptico, que ele oferece ao leitor para capacitá-lo a discernir aquilo que, sem o seu livro, ele talvez jamais experimentaria sozinho. E, o reconhecimento de si mesmo naquilo que o livro diz é, para o leitor, uma prova da veracidade de seu conteúdo".
Penso que há distinções a serem feitas nessa intertextualidade. Por exemplo, na questão jornalística mesmo: pensar que a verdade de um tempo está expressa e contida nos jornais é não reconhecer a linha editorial do mesmo, quase sempre a favor de algo e contra alguém. Muitos jornais impressos, televisivos, virtuais trazem um componente literário em sua elaboração. Da mesma forma, a literatura ainda que incorpore muitos traços da chamada realidade exterior ao texto, não deve ser lida como retrato fiel de uma época. Parafraseando o Carlos Alexandre Baumgarten, meu professor de Teoria da História da Literatura, no mestrado em Letras (área História da Literatura): "Não se pode querer ler Machado de Assis como se ali estivesse registrada a história da sociedade brasileira do final do século XIX e início do XX. Até pelo fato que se fosse cópia da realidade, deixaria de ser literatura".
Literatura não deve ter o compromisso com a realidade, é um exercício ficcional que utiliza-se nas entrelinhas da crítica social à realidade extratextual. A História sim, busca desvendar os mistérios do passado, embora, através de uma narrativa similar a literária, que aproxima o leitor do texto científico, que mesmo assim, apesar do rigor de seu pesquisador, é uma versão dos fatos e não a verdade única. Ambas as formas de expressão convivem na fronteira entre o real e o imaginário, numa prova de sua intertextualidade. Até mesmo a tradução pode ser encarada como uma nova versão de uma obra, dependendo da perícia ou inaptidão do tradutor. Sabe-se de autores que obtém maior sucesso fora de sua terra natal e de seu idioma nativo, supostamente, por conta da competência do tradutor. Tudo na vida é intertextual, fruto de leituras e vivências daqueles que viveram antes de nós. Todo conhecimento humano é fruto da intertextualidade entre o sonho e a razão.
Afinal, como o próprio Marcel Proust disse um dia: "Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras".
Observação: Imagem acima, intitulada "The Big Draw", grafite de Mark Kostabi, extraída da internet, do endereço
http://www.adambaumgoldgallery.com
Marcadores: ficção, intertextualidade, literatura, proust, realidade, sociedade
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