terça-feira, dezembro 11, 2007

Tempo Incerto


"Os homens têm complicado tanto o mecanismo da vida que já ninguém tem certeza de nada: para se fazer alguma coisa é preciso aliar a um impulso de aventura grandes sombras de dúvida. Não se acredita mais nem na existência de gente honesta; e os bons têm medo de exercitarem sua bondade, para não serem tratados de hipócritas ou de ingênuos.
Chegamos a um ponto em que a virtude é ridícula e os mais vis sentimentos se mascaram de grandiosidade, simpatia, benevolência. A observação do presente leva-nos até a descer dos exemplos do passado: os varões ilustres de outras eras terão sido realmente ilustres? Ou a História nos está contando as coisas ao contrário, pagando com dinheiros dos testamentos a opinião dos escribas?
Se prestarmos atenção ao que nos dizem sobre as coisas que nós mesmos presenciamos - ou temos que aceitar a mentira como a arte mais desenvolvida do nosso tempo, ou desconfiaremos de nosso próprio testemunho, e acabamos no hospício!
Pois assim é meus senhores! Prestai atenção às coisas que vos contam, em família, na rua, nos cafés, em várias letras de fôrma, e dizei-me se não estão incertos os tempos e se não devemos todos andar de pulga atrás da orelha!
A minha esperança estava no fim do mundo, com anjos descendo do céu; anjos suaves e anjos terríveis; os suaves para conduzirem os que se sentarão à direita de Deus, e os terríveis para os que se dirigem ao lado oposto. Mas até o fim do mundo falhou; até os profetas se enganam, a menos que as rezas dos justos tenham podido adiar a catástrofe que, afinal, seria também uma apoteose. E assim continuaremos a quebrar a cabeça com estes enigmas cotidianos.
No tempo de Molière, quando um criado dava para pensar, atrapalhava tudo. Mas agora, além dos criados, pensam os patrões, as patroas, os amigos e inimigos de uns e de outros e todo o resto da massa humana. E não só pensam, como também pensam que pensam! E além de pensarem que pensam, pensam que tem razão! E cada um é o detentor exclusivo da razão!
Pois de tal abundância de razão é que se faz a loucura. os pedestres pensam que devem andar pelo meio da rua. Os motoristas pensam que devem pôr os seus veículos nas calçadas. Até ps bondes, que mereciam a minha confiança, deram para sair dos trilhos. Os analfabetos, que deviam aprender, ensinam! Os ladrões vestem-se de policiais, e saem por aí a prender os inocentes! Os revólveres, que eram considerados armas perigosas, e para os quais se olhava a distância, como quem contempla a Revolução Francesa ou a Guerra do Paraguai - pois os revólveres andam agora em todos os bolsos, como troco miúdo. E a vocação das pessoas, hoje em dia, não é para o diálogo com ou sem palavras, mas para balas de diversos calibres. Perto disso, a carestia da vida é um ramo de flores. O que anda mesmo caro é a alma. E o Demônio passeia pelo mundo, glorioso e impune".

Observação 1: O texto acima, para reflexão, fala por si mesmo, e foi publicado em 1964 (ano de meu nascimento) por Cecília Meireles, às paginas 48 e 49, de seu livro de crônicas Escolha o Seu Sonho (Ed. Record, 26ª edição, 2005).
Observação 2: A imagem acima é uma colagem digital, feita por mim, a partir de três imagens que têm tudo a ver com esse "Tempo Incerto" em que vivemos. Entre o macro e o microcosmos, já dizia William, o Shakespeare: "Há mais coisa entre o céu a terra que possa vislumbrar nossa vã filosofia". E eu complementaria: Nossa vã tecnologia também, ainda engatinhando...